quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Dois cavalos e uma revolução

Clássico de Heinrich von Kleist (1777-1811) joga com as ambiguidades da vingança e da justiça
Quem aprecia o tema da vingança não há de ficar à míngua nestes dias. Além de "Relatos Selvagens", filme argentino que comentei na semana passada, está nas livrarias uma clássica e curta narrativa alemã, capaz de atender bem à demanda dos interessados.
Trata-se de "Michael Kohlhaas", romance escrito em 1810 e lançado agora pela editora Civilização Brasileira. O livro está entre as obras-primas de Heinrich von Kleist (1777-1811).
Apesar de escrever em pleno período romântico, Kleist impressiona pelo que já existe de kafkiano --de aflitivo, de labiríntico, de obstaculizado-- em seu universo. "Michael Kohlhaas" narra com estilo imperturbável, e não sei se humorístico, um complicadíssimo processo judicial ocorrido na Alemanha do século 16.
As autoridades de dois Estados independentes --Saxônia e Brandemburgo--, e mais tarde o próprio imperador do Sacro Império Romano-Germânico, para não falar de Martinho Lutero, vão sendo envolvidos na querela jurídica iniciada por Michael Kohlhaas, um mero vendedor de cavalos.
Kohlhaas era "um modelo de bom cidadão", diz o autor no início da história. "O sentimento de justiça fez dele, porém, um bandoleiro e um assassino."
Tudo começa quando ele quer atravessar, com sua tropa de cavalos, a propriedade do fidalgo Wenzel von Tronka. Sem aviso prévio, exigem-lhe pedágios, papéis, garantias.
Disposto à obediência, Kohlhaas concorda em deixar dois de seus cavalos, e um ajudante, no castelo do fidalgo, enquanto parte em busca da papelada. Quando volta, os animais e o ajudante estão quase mortos, tal o tratamento a que foram submetidos pelos sequazes de Von Tronka.
Kohlhaas quer uma reparação. A justiça tarda; o caso cai nas mãos de parentes do fidalgo; a mulher do tropeiro faz uma viagem para apelar às instâncias superiores; é tratada com brutalidade por soldados e morre em poucos dias. Não há nada a fazer.
Nada? Kohlhaas decide vingar-se. Reúne um grupo armado e parte em busca do fidalgo. O que se segue é uma verdadeira insurreição popular, com castelos incendiados, cidades destruídas e inúmeras mortes pelo caminho.
Seria tudo simples, não fosse o gosto de Kleist para explorar a ambiguidade política e moral da situação. O grande Martinho Lutero começa condenando, num escrito inflamado, a tentativa de Kohlhaas; não se pode fazer justiça com as próprias mãos. Convence-se, todavia, do contrário.
Devido a diversas rivalidades internas, ou a concepções menos classistas de justiça, surgem defensores de Kohlhaas entre a própria nobreza alemã. Ele é anistiado --ou será que não foi?
Há passagens que exigem do leitor atenção redobrada, tal o embrulho de príncipes e conselheiros de Estado tratando do assunto.
Quando a justiça é feita, nas últimas páginas do livro, o certo e o errado se compactam insoluvelmente. E a vingança?
Esta aparece num ato bizarro, que não pode ser contado aqui. Admite até uma interpretação sobrenatural, mas isso interessa menos do que o fato de envolver a profecia misteriosa de uma cigana.
Importa prever qual a duração e a descendência de um ramo da nobreza --e nesse enigma talvez esteja a chave para se entender todo o romance.
A revolta de um comerciante de cavalos do século 16 estaria servindo, para Kleist, como símbolo dos conflitos de seu próprio tempo. A memória da Revolução Francesa não podia deixar de estar presente na Alemanha de 1810. Mas, naquele território dividido em incontáveis Estados autônomos, a luta entre nobres e burgueses não se faria com a clareza sangrenta do país vizinho.
É um paradoxo. A confiança na autoridade estatal parece ser maior quanto mais esta é dividida. Se tudo se resolve pelo decreto único de um poder central, eventuais injustiças tendem a provocar uma irrupção violenta; quando são muitas as instâncias, e confuso o sistema, há mais chance de contemporização.
Se esta interpretação se sustenta, Kleist parece deixar em aberto o destino político alemão no final de seu romance. Vingança e justiça, revolta e repressão, poder popular e poder oligárquico se misturam --e triunfam-- no mesmo desfecho.
A ambiguidade é bem moderna; Marcelo Backes a reproduz em sua tradução, usando tons alternados de coloquialismo e formalidade. Quanto a traduzir a realidade de Kleist para a situação brasileira de hoje, aí fica mais difícil, e não sei onde iríamos parar. MARCELO COELHO .Folha, 26.11.2014.

www.abraao.com

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Carolina de Jesus viveu do caos ao caos


Escritora mineira conheceu glória literária e morreu esquecida em sítio em Parelheiros, após passagem por Santana


Jornalista Audálio Dantas a descobriu quando foi ao Canindé fazer uma reportagem sobre a favela
DE SÃO PAULO
Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, em Sacramento, interior de Minas, numa família de negros analfabetos. Chegou a ser presa, acusada de roubar 100 mil-réis de um padre. No raiar de 1947, aportou na Estação da Luz, em São Paulo, onde iniciaria uma caminhada de percalços até se tornar escritora best-seller.
Logo que se instalou na capital paulista conseguiu emprego na casa do médico Euryclides de Jesus Zerbini, precursor da cirurgia do coração no Brasil, que a deixava usufruir de sua biblioteca nos dias de folga. Com apenas dois anos de estudo, adorava ler.
Metida e indisciplinada, como a definem os que conviveram com ela, pulou de emprego em emprego até engravidar de João José, em 1948. Teria mais dois filhos: em 1949, nasceu José Carlos, e, em 1953, Vera Eunice.
Grávida e sem trabalho, foi viver na nascente favela do Canindé, nos arredores do recém-construído estádio da Portuguesa. Levantou um barraco de um cômodo e sobrevivia catando e vendendo papel.
Em 1958, o destino lhe sorriu, com todos os dentes. Apareceu na favela o jornalista Audálio Dantas, da extinta "Folha da Noite". Estava ali para escrever uma reportagem.
"Olhava uns marmanjos brincando no playground quando apareceu uma mulher esculachando, dizendo que se eles não caíssem fora, ia botá-los no livro", lembra Dantas. "Fui perguntar qual livro. Como era esperta, logo viu uma oportunidade."
Carolina de Jesus arrastou o repórter para o seu barraco, onde lhe mostrou uma pilha de cadernos. Entre eles, um diário no qual anotava acontecimentos do dia a dia na favela, iniciado em 15/7/1955.
"Me chamou a atenção. O texto tinha uma forma de narrar próxima da poesia", conta Dantas. "Voltei para a redação e publicamos trechos."
A edição da "Folha da Noite" de 9 de maio de 1958 repercutiu em vários outros jornais e revistas do país. Dois anos depois, a editora Francisco Alves publicou o diário no livro "Quarto de Despejo".
A primeira edição saiu com 30 mil exemplares. Segundo a pesquisadora Raffaella Fernandez, da Unicamp, a obra foi reimpressa sete vezes em 1960. No total, vendeu 80 mil exemplares. "Quarto de Despejo" foi traduzido para 14 línguas em 20 países. "No lançamento em São Paulo, até o Pelé foi", conta Dantas.
Carolina de Jesus virou celebridade e se mudou para um sobrado de três andares no bairro de Santana. Lançou mais três livros: "Casa de Alvenaria", "Pedaços de Fome" e "Provérbios". Postumamente, em 1982, foi lançado na França, "Diário de Bitita", que chegou ao Brasil pela Nova Fronteira, em 1986.
BRIGAS
"Carolina não conseguiu viver em Santana. Brigou com todos os vizinhos, que a receberam mal", lembra Dantas. "Não era uma pessoa comum. Nunca teve alma de pobre favelada, queria brilhar."
De Santana, a escritora migrou para um sítio em Parelheiros, onde começou a definhar no mundo literário até sumir.
"Passada a novidade, Carolina foi rejeitada por todos. Pela direita, por expor a miséria. Pela esquerda, porque não queria saber de luta social", diz Joel Rufino, autor de "Carolina de Jesus "" Uma Escritora Improvável" (Garamond).
Desse tempo, a filha Vera Eunice de Jesus Lima guarda as piores memórias: "Passamos outro tipo de fome, pois conhecemos a fartura. Tinha 13 anos quando minha mãe voltou a catar lixo".
Nunca parou de escrever, até a morte, em 1977, em decorrência de crise de asma.
"Quando conseguia dinheiro, ela voltava para casa feliz, com o pão, e escrevia noite adentro. Dizia que a noite lhe trazia as ideias", diz a filha. Folha, 20.11.2014.
www.abraao.com

www.abraao.com

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Bico grosso

Vencedor do prêmio Pulitzer, 'O Pintassilgo', terceiro romance da americanaDonna Tartt, chega ao Brasil após frisson nos EUA
MARCO RODRIGO ALMEIDADE SÃO PAULO
Tal como um terremoto, Donna Tartt faz a terra tremer de tempos em tempos.

Mais exatamente de dez em dez anos, a escritora americana, 50, publica um romance que faz sensação entre críticos literários e leitores de diversos países.
O terceiro livro da autora chega agora ao Brasil, depois de alcançar o topo da escala Richter nos EUA. "O Pintassilgo" venceu o prêmio Pulitzer de ficção, um dos principais em língua inglesa; está há mais de 40 semanas na lista de best-sellers do "New York Times"; vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares; foi publicado em 28 línguas; será adaptado para o cinema pelo estúdio Warner Bros.
"O Pintassilgo" começa em um hotel de Amsterdã, onde o protagonista, Theo Decker, está escondido, delirando de febre e lendo notícias sobre seus crimes. A vida de Theo virou de ponta cabeça 14 anos antes, quando ele, ainda garoto, perdeu a mãe em uma explosão no Metropolitan Museum de Nova York.
Depois da tragédia, Theo passa por uma sucessão sem fim de infortúnios, envolvendo o mercado negro de arte, drogas, perseguições. Alguns fatos parecem estapafúrdios, mas a narração rica e empolgante prende o leitor até o fim do caudaloso romance (são mais de 700 páginas).
"A gestação de um romance é misteriosa e difícil de explicar, até mesmo para mim, embora possa dizer que a história quase sempre é precedida pela escolha do lugar, pelo cenário da trama", comentou Donna Tartt, por e-mail.
"Eu já queria escrever sobre Amsterdã havia uns 20 anos. E também estava interessada em retratar o lado negro de Nova York. Muitos elementos diferentes foram combinados de forma inesperada."
Outro exemplo disso é o título do livro, retirado de um pequeno quadro de 1654 do pintor holandês Carel Fabritius que exerce papel central na história. Após a explosão do museu, da qual escapa milagrosamente, Theo recolhe a tela e a leva em uma mochila.
Fabritius (1622- 1654) morreu em uma explosão, mas Tartt diz que não pensou nisso ao criar o destino da mãe de Theo."Eu escolhi a pintura antes de saber como Fabritius havia morrido", disse.
"Para mim, parte da atração é que Fabritius é um grande pintor, mas muito pouco conhecido. Era quase como se eu estivesse escrevendo sobre um pintor mitológico. Então isso me deu muita liberdade."
MISTÉRIOS
Nos EUA,"O Pintassilgo" foi chamado de "um clássico do século 21". Parece cedo para tal afirmação, mas a carreira de Tartt foi prodigiosa desde o início.
O primeiro romance já lhe valeu no meio literário a fama de talentosa. "A História Secreta", lançado em 1992, narra um assassinato cometido por estudantes de uma faculdade de elite durante uma orgia regada a drogas e discussões filosóficas.
O livro fez estrondoso sucesso de público e crítica. Inspirou uma espécie de devoção cult entre os jovens e universitários da época.
A legião de fãs, entretanto, teve de esperar um longo tempo pelo próximo da escritora. "O Amigo de Infância" só chegou às livrarias em 2002. É outra história brutal, desta vez sobre o assassinato de uma criança nos anos 1970.
Os três romances de Tartt combinam crimes, suspense, e densidade psicológica.
Tartt também é habilidosa em preservar os mistérios em torno de si, o que contribui para reforçar o mito. Evita aparições públicas, dá poucas entrevistas, se esquiva de perguntas pessoais. Pouco se sabe de sua vida além da obsessão que a leva gastar uma década para escrever um livro.
"Esse é meu jeito de trabalhar. Gosto de explorar as coisas em profundidade. Adoro a sensação de riqueza que você pode conseguir ao passar muito tempo com um texto."

CRÍTICA - ROMANCE

Livro é prolixo e exagerado, mas nunca se torna monótono

ANDRÉ BARCINSKIESPECIAL PARA A FOLHA
"O Pintassilgo", da americana Donna Tartt, é um fenômeno editorial, caso raro de livro que agrada tanto ao público quanto à crítica. Esse tijolo --728 páginas na versão brasileira-- vendeu 1,5 milhão de cópias nos EUA e ganhou o prêmio Pulitzer de ficção.
Mas nem todas as críticas foram elogiosas. Algumas publicações importantes, como "The New Yorker" e "The Paris Review", o desancaram. James Wood, crítico da "New Yorker", disse à revista "Vanity Fair": "O sucesso do livro é prova da infantilização de nossa cultura literária, um mundo em que adultos andam por aí lendo Harry Potter'".
"O Pintassilgo" sai agora no Brasil, quase um ano após sair na Europa e nos EUA. É difícil, portanto, falar sobre ele sem levar em conta todo o "hype" e as discussões sobre seus méritos --ou ausência deles.
Donna Tartt fez um livro grande e ambicioso, com muitos personagens e uma história intrincada. Tudo começa quando Theo Decker, um garoto de 13 anos, vai com a mãe, Audrey, a um museu em Nova York. Há uma explosão, um atentado terrorista, e Audrey morre. Theo escapa dos escombros carregando um pequeno quadro, "O Pintassilgo", pintado pelo holandês Carel Fabritius em 1654.
A tragédia muda a vida de Theo para sempre. Sem parentes próximos --o pai, alcoólatra e viciado em jogo, abandonara a família--ele vai morar no apartamento luxuoso da família de um amigo, onde se sente triste e deslocado.
O livro, com seu retrato cinza de uma juventude destruída, foi comparado a Dickens. Mas em Theo Decker há ecos do niilismo de Holden Caulfield de "O Apanhador no Campo de Centeio", de Salinger, e das aventuras de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, de Mark Twain, especialmente quando Theo acaba em Las Vegas, morando com o pai trambiqueiro, e fica amigo de Boris, com quem faz uma parceria de pequenos crimes.
O livro é um tanto prolixo, e a história dá tantas voltas que se torna quase um conto de fadas: Theo reencontra uma menina que vira no dia do atentado, envolve-se com falsificadores de arte, mete-se com bandidos e acaba em um tiroteio sangrento. Apesar de exageros, o livro nunca se torna monótono, e a curiosidade sobre o destino de Theo supera eventuais excessos.
Dá para entender por que "O Pintassilgo" fez tanto sucesso. É uma boa história, contada de maneira lúdica e com toques de humor. Se merece o Pulitzer, é outro assunto. Mas esse problema é do Pulitzer, não do livro.
    QUE QUADRO É ESSE?

    O holandês Carel Fabritius (1622-1654) pintou "O Pintassilgo" em seu último ano de vida. Discípulo de Rembrandt e mestre de Vermeer, morreu numa explosão aos 32 anos.
    Quase todos os seus quadros se perderam. A tela está exposta no museu Mauritshuis, em Haia (Holanda). Após o sucesso do livro de Donna Tartt, o quadro passou a ser um dos mais procurados do museu. Folha, 27.08.2014.
    www.abraao.com

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O Jabuti se mexe


O poeta e crítico americano Ezra Pound (1885-1972) cunhou uma imagem poderosa ao dizer que "artistas são as antenas da raça". Em termos mais contemporâneos, pode-se afirmar que eles ao menos captam em suas obras a imagem daquilo que cada nação almeja ser.
Tome-se o caso da literatura: seria possível pensar no Brasil de hoje sem um Machado de Assis, um Jorge Amado, um Drummond de Andrade, um Guimarães Rosa?
Os saudosistas dirão que não se fazem mais poetas e escritores como antes. Mas esse pode não passar de um erro de perspectiva, produto da falta de distanciamento.
Poucos discordariam, contudo, de que prêmios exercem papel de relevo no fomento e na divulgação da literatura de um país. Basta pensar na importância de láureas como o Pulitzer, nos Estados Unidos, o Man Booker, no Reino Unido, ou o Goncourt, na França.
Por aqui, essa distinção coube tradicionalmente ao Prêmio Jabuti, criado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) em 1959. Seu primeiro ganhador foi Jorge Amado, com "Gabriela, Cravo e Canela".
O Jabuti vem sofrendo, no entanto, forte concorrência. Ganharam prestígio, nos últimos tempos, o Prêmio São Paulo de Literatura, da Secretaria de Estado da Cultura, e o Portugal Telecom, que leva o nome do patrocinador.
A razão mais saliente, decerto, é o alto valor em dinheiro agraciado pelos competidores --respectivamente, R$ 200 mil e R$ 100 mil para o vencedor principal. No caso do prêmio da CBL, são R$ 38,5 mil.
Além disso, naqueles dois casos, a escolha compete a um júri de corte mais acadêmico. No Jabuti, votam também representantes do mercado editorial, o que já suscitou suspeitas de influência de interesses comerciais no resultado.
De todo modo, o prêmio da CBL permanece o mais cobiçado por muitos escritores, pela reputação de que desfruta na imprensa e entre editores nacionais e estrangeiros. Mais ainda: o montante pulverizado entre suas 27 categorias alcança R$ 164,5 mil, não tão distante dos totais distribuídos por São Paulo (R$ 400 mil) e pela Portugal Telecom (R$ 200 mil).
Não faltam condições, assim, para o Jabuti manter sua liderança e até amplificar o estímulo que oferece à leitura. É o que pretende a nova curadora do prêmio, a escritora de livros infantojuvenis Marisa Lajolo, professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Um bom começo seria reestudar a conveniência de manter quase três dezenas de categorias de premiação, que incluem até livros de gastronomia, saúde e psicanálise. Folha, 13.08.14.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Nadine Gordimer, Nobel de Literatura, morre aos 90

Escritora sul-africana foi um dos principais nomes na luta contra o apartheid

O último romance da autora, 'O Melhor Tempo É o Presente', sai agora no Brasil pela Companhia das Letras
DE SÃO PAULO
A escritora sul-africana Nadine Gordimer, prêmio Nobel de Literatura e uma das principais vozes do mundo literário contra o apartheid, morreu no domingo (13), aos 90 anos, em sua casa em Johannesburgo (África do Sul).
De acordo com um comunicado divulgado pela família da escritora, ela morreu durante o sono, ao lado dos filhos, Hugo e Oriane.
A família não divulgou a causa da morte. Em março deste ano, a agência Ansa divulgou que Gordimer sofria de câncer no pâncreas.
O último livro da escritora, "O Melhor Tempo É o Presente", sobre os dilemas de um romance inter-racial na África do Sul, acaba de ser publicado no Brasil pela Companha das Letras. A editora também publicou outros livros de Gordimer, como "Ninguém para me Acompanhar" e "A Arma da Casa".
Os dois volumes das memórias da escritora, "Tempos de Reflexão", foram lançados pela Globo Livros.
No total, Gordimer escreveu 15 romances e vários contos. Em todos eles, comentou a opressão, a violência, a discriminação racial e as consequências do apartheid na sociedade sul-africana.
Por conta dessa temática, três livros da autora foram proibidos na África do Sul, inclusive "A Filha de Burger" (1979), que é uma de suas obras mais conhecidas.
Ao conceder a ela o Nobel de Literatura de 1991, a Academia Sueca destacou sua "a magnífica escrita épica" e disse que Gordimer "tem sido de grande benefício para a humanidade".
A escritora nasceu em 20 de novembro de 1923, filha de imigrantes judeus. Cresceu em um bairro rico da pequena cidade de Springs.
Frequentou regularmente bibliotecas e começou a escrever aos nove anos. Seu primeiro romance, "The Lying Days" (1953), teve uma boa acolhida na crítica.
"Anos mais tarde, percebi que, se fosse negra, provavelmente não me tornaria uma escritora, uma vez que as bibliotecas que eu frequentava eram proibidas a eles", disse ao receber o Nobel.
Ela sempre se negou a deixar o país, mesmo nos momentos mais sombrios do apartheid, o regime de segregação racial que durou entre 1948 e 1994 no país.
Próxima de Nelson Mandela (1918-2013), a autora foi uma das pessoas que o líder sul-africano pediu para ver quando saiu da prisão, em 1990. Os dois fizeram parte do CNA (Congresso Nacional Africano), partido de defesa da população negra.
PODER PERIGOSO
Mesmo com a chegada do CNA ao poder, a partir da eleição de Mandela, Gordimer não hesitou em apontar os erros do partido. Ao criticar o atual presidente da África do Sul, Jacob Zuma, também do CNA, ela se disse decepcionada com seu partido: "O poder é algo perigoso mesmo".
A autora esteve no Brasil em 2007, participando da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty.
Gordimer se casou duas vezes. Viúva, deixa os dois filhos, um de cada união. Em comunicado, os filhos lembram que a mãe "se importava profundamente com a África do Sul, sua cultura, seu povo, e sua atual luta para perceber sua nova democracia".

Para ela, cabia à ficção iluminar labirinto da experiência humana

O fim do apartheid não moveu sua bússola literária. Continuou ficcionalizando as injustiças de seu país e da áfrica
CASSIANO ELEK MACHADOEDITOR DA "ILUSTRÍSSIMA"
À primeira vista, Nadine Gordimer impressionava por sua pequenez. Contribuíam para isso os pesados xales multicoloridos que trazia nas costas, de espessura incompatível com o tempo ameno daquele julho em Paraty.
Voz alquebrada e baixinha, cabelos brancos puxados para trás, num quase coque, óculos de aros finos, tinha ar de animalzinho indefeso.
E era todo o contrário.
"Qualquer escritor que tenha um mínimo de valor espera propiciar um brilho tênue para iluminar o belo e sangrento labirinto da experiência humana", disse ela, logo de cara, na Flip.
Era 2007 e, aos 84 anos, a sul-africana havia cruzado o Atlântico Sul para participar do festival literário local.
No painel "Panteras no Porão", que dividiu com o israelense Amós Oz, não demorou para exibir suas garras. Tinha longa trajetória nisso.
Gordimer crescera falando inglês numa cidadezinha onde a elite se expressava em africâner, era a judia na comunidade católica, a mulher branca cercada pelos homens negros que trabalhavam em minas de ouro da região.
Destes contrastes, e, mais, de sua indignação empertigada com o regime do apartheid, que se alimentava quase toda a sua ficção, com destaque para romances como "O Pessoal de July" (1981) e "A Filha de Burger" (1979).
O fim do apartheid não moveu sua bússola literária. Continuou ficcionalizando as injustiças de seu país e as do continente africano.
Em entrevista inédita à Folha, em fevereiro de 2013, já chegando aos 90, Gordimer estava vivamente indignada com uma lei prestes a ser aprovada na África do Sul, que limitaria a ação da imprensa local. "Querem nos proibir de saber sobre a corrupção", disse ela, em tom exaltado. Ela experimentara a censura: teve três livros banidos durante o apartheid.
Nelson Mandela, de quem veio a ser amiga --tomavam café da manhã uma vez por mês--, foi um dos mentores da vencedora do Nobel de 91.
Na ficção, celebrava autores como Bertolt Brecht e Albert Camus. "Como diz Camus, se você é escritor e não tem responsabilidades com as pessoas comuns, deve deixar de ser escritor. O único cuidado a ser tomado é que estas lutas não te impeçam de seguir criando e de explorar, pela ficção, todas as dimensões da vida", disse a pequena voz, antes de desligar. Folha, 15.07.2014.
www.abraao.com

www.abraao.com


www.abraao.com


www.abraao.com

terça-feira, 15 de abril de 2014

ENTREVISTA - HAROLD BLOOM: 'Não existe leitor passivo'


O maior crítico deste tempo fala de sua obra e de leitura ativa: um duelo com a própria capacidade para extrair mais do livro
DAVID MOLINACOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM NEW HAVEN (EUA)SIDNEY MOLINACRÍTICO DA FOLHA
Aos 83 anos, com saúde frágil, Harold Bloom, crítico literário mais famoso da atualidade, segue lecionando na Universidade de Yale (EUA).
Seus cursos sobre Shakespeare e literatura norte-americana só aceitam 12 alunos cada, já que, sobretudo no inverno, as aulas às vezes são transferidas para a sua casa.
No semana passada, Bloom conversou com a Folha sobre seu livro-testamento, "A Anatomia da Influência", lançado aqui no final de 2013.
Quarenta anos após a publicação de "A Angústia da Influência" (1973), obra que, para além da literatura, mudou o estudo das reverberações de um artista em outro, ele chega a uma fórmula mínima: "Influência é amor literário", aquilo que ao mesmo tempo afasta e aproxima autores fortes uns dos outros.
A entrevista ocorreu na casa de Bloom, com o som de "Concertos de Brandenburgo", de Bach, ao fundo. No cômodo ao lado, Jeanne, sua mulher, tentava fazer o computador funcionar com a ajuda de um aluno.
-

Folha - Em "A Anatomia da Influência" você define influência como "amor literário, temperado pela defesa". É possível dizer que sua ênfase nos anos 1970 estava em "defesa", e agora em "amor literário"?
Harold Bloom - Quando escrevi "A Angústia da Influência", havia a crença universal de que toda influência poética era um processo benigno. Por isso era necessário enfatizar o negativo, o que foi mal compreendido. Este livro é diferente. É uma suma pessoal feita em uma idade em que a gente sabe que pode morrer a qualquer hora, mas ainda tem tempo de resumir para si o que acredita ser a sua contribuição.


O que é "amor literário"?
Você está apaixonado? Mesma coisa. Incluindo inevitáveis ambivalências, dificuldades, incompreensões.


Seu curso sobre Shakespeare tem seis aulas sobre "Rei Lear". Como é analisar Lear depois dos 80?
As duas pessoas mais velhas da obra de Shakespeare são sir John Falstaff e rei Lear, ambos com mais de 80. Caminho para completar 84. Sempre adorei Falstaff.
Lear é o maior representante em toda a literatura ocidental da autoridade paterna, que a maioria das sociedades confere às figuras do rei e de Deus. A melhor coisa dita na peça sobre Lear é que "ele sempre se conheceu muito pouco". Não há autoconhecimento, e esse é um erro que os críticos que o idealizam cometem.


Como vê a relação da leitura com as tecnologias visuais?
É difícil. É mais difícil ainda para a sua geração se desligar do visual do que para mim e Jeanne [mulher de Bloom]. Nada disso existia quando éramos jovens. Quer dizer, o cinema sim, mas a TV mal existia, não me lembro. E o computador, claro, muito mais importante que a tela de cinema ou da TV e que usurpou o lugar de ambas, não existia de forma generalizada até 25 anos atrás. Por isso encorajo estudantes a lerem em voz alta, a irem a um lugar onde possam ficar sozinhos e ler em voz alta. Ler de verdade, ler Shakespeare (1564-1616), ou os poetas Wordsworth (1770-1850, inglês), ou Wallace Stevens (1879-1955, americano) ou Hart Crane (1899-1932, americano), algum escritor difícil, é um processo extremamente ativo no qual você tem que lutar com todas as suas faculdades, mesmo se não puder compreender tudo, para tirar mais daquilo.
Já com o visual, mesmo que exista algo como olhar de forma reativa (não que eu saiba muito sobre isso, não sou guiado pelo visual, sou orientado puramente pelo verbal), com o visual é muito fácil relaxar e ser passivo. Você não pode ler passivamente.


Como vê o governo Obama?
Tudo indica que Obama ampliou o programa de vigilância dos EUA. Nesse tema, se situa à direita do idiota George Bush. Um imenso desapontamento.


Sua teoria da influência enfrentou resistências de formalistas, de especialistas em grupos marginalizados e dos que interpretam politicamente seu foco no combate entre autores. Como trata isso hoje?
Se respondesse a todas as provocações, não seria mais capaz de ler, escrever ou ensinar. A notoriedade tem o seu aspecto positivo, mas você perde tanto quanto obtém dela. Hoje não respondo mais. É bobagem acreditar que você pode beneficiar grupos insultados, explorados ou desfavorecidos lendo e ensinando a ler obras menores só por causa da pigmentação da pele, orientação sexual, gênero ou origem étnica. Os departamentos de língua e literatura inglesa têm só 20% do número de alunos que tinham há 30 anos. Ocasionalmente vejo a lista dos cursos e sinto um calafrio. Vejo pessoas que não passam de vendedores de lixo sendo contratadas. Mas no máximo em cinco anos estarei morto ou incapacitado. E muita gente respirará aliviada.

Livro analisa 'amor literário' em canto de cisne virtuoso
SIDNEY MOLINADO CRÍTICO DA FOLHA
"Por que a poesia é poesia e não outra coisa, seja história, ideologia, política ou psicologia?" Em "A Anatomia da Influência" (2011), lançado no Brasil no ano passado, o crítico literário Harold Bloom volta ao tema que o colocou no centro dos estudos literários nos anos 1970: "É meu canto do cisne", afirma.
Para Bloom, o pensamento poético é sempre uma forma de memória, a angústia da influência que ao mesmo tempo move e paralisa o jovem autor diante da força dos precursores.
Nascida no embate com os formalistas, sua teoria exercitava um caleidoscópio cabalístico de tropos e defesas psíquicas, um "mapa da desleitura" que desatou a influência do mero estudo das fontes e alusões.
A definição madura evita essas categorias: "No labirinto deste livro, elas não podem fornecer um fio desejável, já que apenas Shakespeare e Whitman conseguem fazê-lo".
No novo livro, a influência é comprimida nas ambivalências da expressão "amor literário". A obra não um tratado teórico, já que, antes de tudo, comenta obras específicas de cerca de 30 autores.
Além de Shakespeare e Whitman, estão ali Milton, Joyce, os herdeiros de Shelley e nomes da geração do próprio Bloom. Análises de Paul Valéry e Leopardi temperam a presença maciça dos autores de língua inglesa.
Não é fácil traduzir um autor cujo virtuosismo faz dos poetas ao mesmo tempo causa e consequência de sua própria voz. Sua prosa reverbera uma apreciação musical dos textos, em um fio tênue que não se sobrepõe à "poesia da poesia". A versão brasileira tem o cuidado de oferecer o original das traduções.
Incomodam apenas duas opções terminológicas que já haviam sido bem resolvidas em português: "relações revisionais" ("revisionary ratios"), ao invés de "razões revisionárias"; e, sobretudo, "má avaliação" ("misprision"), ao invés de "desapropriação" e "expropriação".
Em um dos capítulos mais originais, Harold Bloom analisa a influência de uma mente sobre si mesma, a capacidade da literatura criar formas de vida; afinal, "se Falstaff e Hamlet são ilusórios, então o que somos eu e você?".

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Livro reúne peças de Consuelo de Castro Dramaturga, que há 15 anos não lança novo texto, diz que só produz quando é certo que o trabalho será encenado

Em 'Três Histórias de Amor e Fúria', autora de 'Prova de Fogo' (1968) dá espaço a obras dos anos 1980 e 1990
GUSTAVO FIORATTIDE SÃO PAULO
"Não sou mulher de gaveta", diz Consuelo de Castro, dramaturga de raízes combativas e uma extensa carreira embebida em situações de repressão política. Ela lança, no sábado, o livro "Três Histórias de Amor e Fúria", no Espaço Parlapatões, em SP.
Agitada e sempre empunhando um cigarro que demora 15 minutos para acender e outros dois para fumar (foram três em uma hora e meia de entrevista em seu flat próximo à avenida Paulista), a autora conta que só produz se é para ver suas peças no palco ou publicadas.
A aflição com a possibilidade de ver os textos guardados resultou num hiato de 15 anos --período em que não produziu nada que tenha vindo a público.
"Três Histórias de Amor e Fúria" é composto de três peças já encenadas, apresentadas em cronologia decrescente: "Only You" (1998), "Memórias do Mar Aberto - Medeia Conta Sua História" (1997) e "Mel de Pedra" (1985).
Consuelo explica a pausa: "Vem aquela explosão, você escreve... E depois o texto fica na gaveta... Pois eu abortei ideias para não passar por esse tipo de impasse de novo", diz ela, criticando, de quebra, colegas que encomendaram textos e sumiram do mapa sem encená-los.
Em "Only You", sua última peça levada ao palco (por José Renato, em 2001, e por Bibi Ferreira, em 2002), um autor de novelas recebe a visita de uma mulher enigmática e embarca num jogo para desvendar sua identidade.
Em "Memórias do Mar Aberto", Consuelo relê a tragédia de Medeia, que mata os filhos, "só que na minha versão ela o faz por um erro de estratégia, e não por vingança", diz a autora. Em "Mel de Pedra", uma bailarina e uma antropóloga abastecem angústias determinadas por esperas "becketianas".
São, diz Consuelo, obras preferidas de um determinado período em que seu trabalho se impregnou da polaridade referida no título do livro: "O amor e a fúria estão ali, nessas histórias". "Não vou dizer que há uma evolução entre os trabalhos porque seria muito pretensioso dizer que eu própria evoluí", diz.
Em sua fase mais combativa, até os anos 1980, ela não poupava esforços para provocar os militares. Foi assim com "Prova de Fogo" (1968), seu primeiro texto, censurado.
Consuelo conta que está disposta a se dedicar novamente aos palcos. Há pouco mais de um ano, ela escreveu uma nova peça a partir de uma pesquisa sobre a vida da farmacêutica cearense Maria da Penha, que foi baleada e torturada pelo marido e lutou para aprovar a lei que endureceu a punição a casos de violência doméstica.
Só não quer produzir o espetáculo. "Quando resolvi produzir, percebi que não sou do ramo e quebrei a cara. Saí dessa experiência esgotada."